Por décadas, a primeira coisa que aprendemos no atendimento ao trauma foi o famoso “ABC”: Airway (Via Aérea), Breathing (Respiração) e Circulation (Circulação). É a base, o mantra, o que todo profissional de saúde tem gravado na mente. Mas e se eu te dissesse que essa ordem pode estar, na verdade, atrapalhando? 🤯
O ACLS percebeu isso em 2010, quando rearranjou a ordem de abordagem para “CAB”. Hoje, 15 anos depois, o ATLS finalmente deu o destaque necessário à circulação incorporando o XABCDE (coisa que seu primo PHTLS já entendia desde 2021). Quer saber mais sobre o que mudou no ATLS 11ª edição? Clique aqui!
Para dar mais força a esta recomendação, a Sociedade Mundial de Cirurgia de Emergência e a
Sociedade Panamericana de Trauma publicaram o artigo “Prioritizing circulation over airway to improve survival in trauma patients with exsanguinating injuries” Clique aqui!
O X da questão: por que mudar?
Nos pacientes traumatizados com hemorragia exsanguinante, cada segundo conta para controlar o sangramento. A sobrevivência depende da habilidade de o corpo fazer vasoconstrição e redirecionar o fluxo sanguíneo para os órgãos nobres. Por mais que a via aérea seja vital, as intervenções para garanti-la (como a intubação, que envolve sedação e ventilação com pressão positiva) podem ter um efeito devastador em quem já está em choque hemorrágico. Pense comigo:
● Piora da hipotensão: Sedativos podem derrubar ainda mais a pressão arterial, causar vasodilatação e redução da contratilidade miocárdica.
● Colapso cardiovascular: A ventilação mecânica pode diminuir o retorno venoso ao coração, agravando o choque.
● Perda do efeito “tamponamento” dos músculos: Em alguns casos, a musculatura ao redor de um sangramento (como no abdome, pescoço ou áreas juncionais) pode estar ajudando a conter a hemorragia. o bloqueio neuromuscular para intubação pode relaxar essa musculatura e piorar o sangramento.
Ou seja, em vez de ajudar, intubar primeiro pode acelerar a morte por falta de sangue! 🩸
Os achados do estudo 📊
Para entender melhor essa dinâmica, um grupo de especialistas realizou uma revisão sistemática e meta-análise de estudos publicados entre 2000 e 2024. Para serem elegíveis, os estudos deveriam abordar, conforme o modelo PICO (Clique Aqui! ):
● POPULAÇÃO: vítimas de trauma com hemorragia exsanguinante
● INTERVENÇÃO: abordagem inicial C-A-B
● COMPARAÇÃO: abordagem inicial A-B-C
● OUTCOME (DESFECHO): mortalidade e complicações
Ao final, 06 estudos atenderam aos critérios de inclusão e exclusão (todos observacionais). Foram analisados dados de 11855 pacientes.
E os resultados?
CAB é melhor!
O estudo revelou um aumento significativo na mortalidade associado à abordagem tradicional ABC: o risco de morte foi 3,65 vezes maior para pacientes que foram intubados antes do controle do sangramento. Em estudos prospectivos, o risco de mortalidade com o ABC tradicional foi ainda mais alto, chegando a quase 10 vezes mais! 😱
Isso mostra que, para pacientes sangrando ativamente, a prioridade deve ser estancar o sangramento e repor o volume perdido.
O que muda na prática? 🛠️
Levando em consideração este resultado, o grupo de especialistas teceu as seguintes recomendações:
Priorize o controle da hemorragia em detrimento da intubação
Antes de pensar em intubar, a meta é parar o sangramento. Isso significa compressão direta, torniquetes, ou o que for necessário para conter a perda de sangue. Enquanto a circulação é priorizada, use métodos não invasivos para a via aérea, como cânulas orofaríngeas, ventilação com bolsa-válvula-máscara (ambu) e oxigênio suplementar. A intubação só deve ser considerada após a estabilização hemodinâmica, a menos que haja uma obstrução real da via aérea.
Reposição de sangue PRECOCE
Comece a transfundir sangue total ou componentes sanguíneos (plasma, plaquetas, hemácias, idealmente na proporção 1:1:1) o mais rápido possível. A ideia é “encher o tanque” antes que ele esvazie completamente.
Treinamento e protocolos
Equipes de emergência e trauma, tanto pré-hospitalares (SAMU, bombeiros) quanto hospitalares (pronto-socorro, centro cirúrgico), precisam ser treinadas para essa nova abordagem. Os protocolos de atendimento devem ser revisados para refletir essa prioridade, limitando intervenções desnecessárias na via aérea que possam piorar o choque.
Exceções e Nuances: Nem Tudo é CAB 🧠
É importante ressaltar que essa mudança de prioridade não se aplica a todos os pacientes traumatizados. Existem exceções cruciais:
Obstrução de via aérea
Se a via aérea estiver realmente obstruída (por exemplo, por um edema grave, hemorragia orofaríngea ou trauma facial), a intubação continua sendo a prioridade absoluta. Não há circulação sem oxigênio!
Trauma cranioencefálico grave (TCE)
Pacientes com TCE grave precisam de oxigenação cerebral adequada para evitar lesões secundárias. Nesses casos, a intubação precoce para evitar hipóxia e proteger o cérebro pode ser indicada. O artigo ressalta, entretanto, que o consenso tradicional de intubar todos os pacientes com Glasgow >9 deve ser reavaliado, especialmente no grupo onde o rebaixamento do nível de consciência se atribua à hipoperfusão cerebral secundária ao sangramento, e não a lesão cerebral direta.
Conclusão: Uma Mudança que Salva Vidas 🌟
Esta mudança já vinha sendo discutida há muito entre especialistas, e finalmente recebeu a importância que merece dentro das principais referências de atendimento ao trauma. A colaboração entre equipes, o treinamento contínuo e a atualização dos protocolos são essenciais para que esta evidência se traduza em mais pacientes voltando para casa.
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REFERÊNCIA
Ferrada, P., Shafique, S., Brenner, M. et al. Prioritizing circulation over airway to improve survival in trauma patients with exsanguinating injuries: a world society of emergency surgery-panamerican trauma consensus statement. World J Emerg Surg 20, 47 (2025). https://doi.org/10.1186/s13017-025-00618-2