Fentanil: mocinho ou vilão?

Você já deve ter se deparado com algumas discussões sobre o uso do fentanil na intubação de pacientes no departamento de emergência. E deve ter visto que existe o grupo que usa e estimula o uso do fentanil para alguns grupos de pacientes. E que existe o grupo que abomina a droga e quer distancia na hora de fazer a indução para intubação. De onde vem essa rivalidade?

Abaixo separamos 3 artigos com diferentes visões acerca do Fentanil. E gostaríamos que você tirasse suas próprias conclusões acerca da medicação. E aí, mocinho ou vilão? Ou tudo pode ser individualizado?

Rapid sequence intubation in emergency: is there any place for fentanyl? (Induction à séquence rapide en urgence : quelle est la place du fentanyl ?)

Ano: 2002

Objetivo
Avaliar se um bolus único de fentanil (3 µg/kg), administrado durante a sequência rápida de intubação (RSI) ou imediatamente após a intubação, consegue preencher a “lacuna sedativa” entre os agentes de indução (etomidato + succinilcolina) e o início efetivo da sedação de manutenção, minimizando sinais de despertar e manifestações neurovegetativas sem causar instabilidade hemodinâmica.

População estudada

  • Ensaio prospectivo, randomizado, duplo-cego em 36 pacientes de 18 a 75 anos, em contexto pré-hospitalar ou sala de choque.
  • Três grupos (n=12 A; n=11 B; n=13 C):
    • A: fentanil 3 µg/kg durante a indução
    • B: fentanil 3 µg/kg logo após a intubação

C: controle (sem fentanil) .

Principais resultados

  • Sinais de despertar (10 min pós-IOT):
    • A: 42 % | B: 36 % | C: 77 % .
  • Score de Ramsay (10 min): significativamente menor no grupo C, refletindo sedação insuficiente nos não tratados com fentanil .
  • Hemodinâmica: sem diferenças significativas em frequência cardíaca, pressão arterial ou SpO₂; leve atenuação não significativa da resposta pressórica nos grupos com fentanil .
  • Reforço sedativo: 77 % do grupo C precisaram de sedação adicional aos 10 min, versus 55–70 % nos grupos A e B só aos 15 min .
  • Segurança: nenhum episódio de vômito ou instabilidade hemodinâmica atribuível ao fentanil; todos intubados em primeira tentativa em < 3 min .

Conclusão
Um bolus de fentanil 3 µg/kg, preferencialmente administrado imediatamente após a intubação, retarda significativamente os sinais de despertar e modera as respostas neurovegetativas iniciais, sem impacto hemodinâmico adverso. Sua inclusão nos protocolos de RSI de emergência pode aprimorar o conforto do paciente e reduzir riscos neurológicos e cardiovasculares no período crítico pós-intubação .

Nome do artigo
Association of fentanyl use in rapid sequence intubation with post-intubation hypotension

Ano: 2018

Objetivo
Avaliar se a utilização de fentanil como pré-tratamento em intubação de sequência rápida (RSI) no pronto-socorro está associada a um risco aumentado de hipotensão pós-intubação (PASB ≤ 90 mmHg) em pacientes não-parada cardíaca .

População estudada

  • Desenho: Análise secundária de coorte prospectiva multicêntrica (JEAN-2).
  • Local: 14 emergências no Japão, de fevereiro/2012 a novembro/2016.
  • Critérios de inclusão: Adultos (≥18 anos) submetidos à RSI por indicação médica não-cardíaca.
  • Amostra final: 1 263 pacientes (466 receberam fentanil; 797, não) .

Principais achados

  • Incidência de hipotensão pós-intubação:
    • Fentanil: 17 %
    • Sem fentanil: 6 %
  • Razões de Chance (OR):
    • Não ajustada: 1,73 (IC 95 % 1,01–2,97; p = 0,048)
    • Ajustada (idade, sexo, peso, indicação, sedativo, especialidade, tentativas, efeito de centro): 1,87 (IC 95 % 1,05–3,34; p = 0,03)
    • Propensity-score matching: OR 3,17 (IC 95 % 1,96–5,14; p < 0,01) .

 

Discussão ampliada
O fentanil, opioide de curta ação, é frequentemente usado na RSI para atenuar picos de catecolaminas durante laringoscopia. Contudo, essa inibição simpática pode precipitar queda de pressão em pacientes já vulneráveis – especialmente idosos ou com volemia marginal. Os resultados se alinham a estudos em sala de cirurgia, que também relatam episódio de hipotensão após indução com fentanil .

No contexto do pronto-socorro, onde recursos de monitorização invasiva e reposição volêmica podem ser mais limitados, a hipoperfusão transitória pode agravar a isquemia tecidual e correlacionar-se a maior mortalidade e tempo de internação prolongado. Ainda que a RSI seja padrão de ouro para via aérea, estes dados sugerem que o fentanil não deve ser usado de forma indiscriminada: pacientes com pressão limítrofe ou sinais de choque inicial podem se beneficiar de estratégias sem opioide ou com doses reduzidas, priorizando sedativos menos hemodinamicamente ativos, como ketamina em doses adequadas .

Além disso, a magnitude da associação após pareamento por propensity-score reforça que o efeito não se deve apenas a vieses de seleção: mesmo em subgrupos homogêneos, a chance de hipotensão foi três vezes maior. Isso demanda revisão de protocolos locais, treinamento em reposição imediata de volume e consideração de vasopressores precoces em quem receber fentanil.

Conclusão
Em pacientes adultos submetidos à RSI no pronto-socorro, o uso de fentanil como pré-medicação aumenta de forma consistente o risco de hipotensão pós-intubação. É prudente pesar os riscos e benefícios, individualizando a escolha do agente de pré-tratamento, sobretudo em indivíduos com maior probabilidade de instabilidade hemodinâmica .

Effect of low-dose ketamine versus fentanyl on attenuating the haemodynamic response to laryngoscopy and endotracheal intubation in patients undergoing general anaesthesia: a prospective, double-blinded, randomised controlled trial

Ano: 2019

Objetivo
Comparar, em pacientes submetidos à anestesia geral eletiva, a incidência de hipertensão e taquicardia desde o pós-indução (pré-intubação) até 10 min após a intubação, entre dois regimes de pré-medicação:

  • Fentanil 1,0 µg/kg
  • Cetamina 0,5 mg/kg
    Além disso, avaliar ocorrência de hipotensão pós-indução e de fenómenos neuropsiquiátricos durante o despertar .

População estudada

  • Desenho: Ensaio clínico prospectivo, duplo-cego, randomizado.
  • Local: Aga Khan University Hospital, Nairobi (Nov/2015–Abr/2016).
  • Critérios de inclusão:
    • 108 pacientes ASA I–II, 18 – 65 anos, programados para cirurgia eletiva sob anestesia geral.
    • Randomizados em duas mãos iguais (n=54): grupo Fentanyl e grupo Ketamine.
  • Cegamento: Participantes, anestesiologistas e pesquisadores mantiveram-se cegos quanto ao estudo .

Resultados principais

  • Hipertensão (>20 % do basal):
    • Ketamine: 6/54 (11,1 %)
    • Fentanyl: 1/54 (1,9 %)
    • p = 0,06 (não estatisticamente significativo)
  • Taquicardia (>20 % do basal):
    • Ketamine: 7/54 (13 %)
    • Fentanyl: 6/54 (11 %)
    • p = 0,82 (sem diferença significativa)
  • Hipotensão (>20 % de queda no MAP):
    • Ketamine: 21/54 (39 %)
    • Fentanyl: 41/54 (76 %)
    • p < 0,001; OR ajustada ketamina vs fentanil = 0,18 (IC 95 % 0,07–0,45)
  • Fenômenos neuropsiquiátricos no despertar: Ausentes em ambos os grupos .

Discussão
Este estudo demonstra que, embora o uso de ketamina possa resultar em tendência maior à elevação transitória da pressão arterial após a intubação (não significativa), sua principal vantagem é reduzir substancialmente os episódios de hipotensão pós-indução. Isso sugere que, em cenários onde a manutenção da perfusão é crítica, ketamina 0,5 mg/kg oferece um perfil hemodinâmico mais estável do que fentanil 1 µg/kg, sem aumentar significativamente a taquicardia.

Aspectos a considerar na aplicação clínica:

  • Estado volêmico pré-operatório: Jejum prolongado pode predispor a maior hipotensão com fentanil + propofol.
  • Profundidade anestésica: Ausência de BIS ou EEG indica variabilidade possível na resposta de cada paciente.
  • Equianalgesia e dose: A dose de cetamina foi suficiente para analgesia sem expressiva estimulação simpática, equilibrando-se com a queda vasodilatadora do propofol.
  • Limitações: Estudo unicêntrico, população ASA I–II e não dimensionado para desfechos a longo prazo (ex.: infarto peri-intubação, mortalidade) .

Conclusão
Em pacientes ASA I–II submetidos à sequência rápida de intubação sob anestesia geral, ketamina 0,5 mg/kg é tão eficaz quanto fentanil 1 µg/kg na atenuação da resposta hipertensiva e taquicárdica à laringoscopia, oferecendo a vantagem significativa de proteger contra hipotensão pós-indução. Ketamina configura-se, portanto, como alternativa viável ao fentanil em protocolos que visem maior estabilidade hemodinâmica .

Nome do artigo
Fentanyl versus placebo with ketamine and rocuronium for patients undergoing rapid sequence intubation in the emergency department: The FAKT study— A randomized clinical trial

Ano: 2022

Objetivo
Determinar se a adição de fentanil a um regime padrão de indução com cetamina e rocurônio em intubação de sequência rápida no pronto-socorro resulta em menor proporção de pacientes com pressão sistólica fora da faixa-alvo de 100–150 mm Hg nos 10 min após a indução .

População estudada

  • Ensaio clínico multicêntrico, prospectivo, randomizado, duplo-cego e placebo-controlado em 5 hospitais de New South Wales, Austrália (2018–2020).
  • 290 adultos (≥ 18 anos) submetidos à RSI: 142 receberam fentanil + cetamina/rocurônio e 148 receberam placebo + cetamina/rocurônio.
  • Critérios de exclusão: alergia a fentanil, necessidade de regime alternativo, “paralysis-only” ou falta de equipe treinada .

Resultados principais

  • Desfecho primário (SBP fora de 100–150 mm Hg nos 10 min pós-indução): 66 % no grupo fentanil vs. 65 % no placebo (diferença = 1 %, 95 % CI –10 a 12; p = 0,86).
  • Hipotensão (SBP ≤ 99 mm Hg): 29 % vs. 16 % (diferença = 13 %, 95 % CI 3–23).
  • Hipertensão (SBP ≥ 150 mm Hg): 55 % vs. 69 % (diferença = 14 %, 95 % CI 3–24).
  • Taquicardia (FC ≥ 120 bpm): 48 % vs. 61 % (diferença = 13 %, 95 % CI 2–25).
  • Hipóxia (SpO₂ ≤ 93 %): 19 % vs. 13 % (diferença = 6 %, 95 % CI –2–15).
  • Taxa de sucesso à primeira tentativa: 92 % em ambos os grupos.
  • Mortalidade em 30 dias: 19 % vs. 24 % (diferença = 5 %, 95 % CI –4–15).

Dias livres de ventilação aos 30 dias: mediana de 28 dias em ambos .

Discussão
Embora a proporção de pacientes com SBP fora da faixa-alvo tenha sido quase idêntica, a distribuição das pressões mostrou que o fentanil reduziu os episódios de hipertensão pós-indução em troca de mais casos de hipotensão, sem alterar as condições de intubação, taxa de sucesso nem mortalidade . Em emergências, essa “troca” hemodinâmica deve ser considerada à luz do quadro do paciente: em patologias como traumatismo craniano ou sangramento ativo, evitar hipotensão pode ser crucial; já em casos de hipertensão aguda, controlar picos pressóricos pode reduzir complicações como edema cerebral ou isquemia miocárdica. A alta taxa de sucesso e ausência de diferença em complicações sugere que o fentanil pode ser incluído ou omitido sem impactar a execução técnica da RSI, mas com efeitos clínicos significativos nos valores pressóricos .

Conclusão
Adicionar fentanil à combinação de cetamina + rocurônio não modificou a proporção de pacientes com SBP fora de 100–150 mm Hg, mas mudou o perfil hemodinâmico: menos hipertensão e mais hipotensão pós-indução, sem impacto sobre intubação, mortalidade ou dias livres de ventilação. A decisão de usar fentanil deve levar em conta as metas pressóricas individuais e a tolerância hemodinâmica de cada paciente .

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